JOÃO LÜDERITZ
JOÃO LÜDERITZ (1883 – 1953)
João José Lüderitz nasceu em 24 de junho de 1883, em Porto Alegre. Faleceu em março de 1953 na mesma cidade de nascimento. Graduou-se em 1904 em Engenharia Civil, na Escola de Engenharia de Porto Alegre. A República velha e o Estado Novo são os dois períodos em que João Lüderitz viveu, realizou sua formação e atuou profissionalmente. Entretanto, neste estudo será dada mais atenção na descrição e análise do momento da República Velha, visto que, sua formação e suas principais contribuições para com o ensino técnico-profissional ocorreram nesse período.
A instituição da República, em particular no período da Primeira República (1889-1930), o Brasil tem como base um apostolado positivista, formada em sua maioria por militares, e outro constituído de liberais, formado por alguns juristas e profissionais liberais, que tinham como propósito implementar no País as ideias filosóficas e políticas, fundamentadas na concepção positivista de Augusto Comte. Entretanto, na escrita da Constituição de 24 de fevereiro de 1891, as ideias positivistas tiveram pouco espaço. Será no Rio Grande do Sul, sob o governo de Júlio de Castilhos, que as ideias positivistas tiveram um maior acolhimento, sendo base para a escrita da constituição daquele estado (BALEEIRO, 2012).
As ideias positivistas conduzem para uma visão objetiva da sociedade, em que os fatos sociais deveriam seguir uma ideia de natureza precisa e científica. Nesse sentido, tenta-se estabelecer e compreender as leis da sociedade tomando-se a ciência como um modelo. Estas ideias também possuem implicações no constructo do conhecimento. No positivismo o conhecimento independe da experiência, a priori, perde espaço para o conhecimento empírico, a posteriori, baseado em evidências. Diante disto, o positivismo prega uma formação baseada nos saberes práticos em detrimento dos saberes teóricos. Dito isto, no espaço formativo positivista, os saberes teóricos devem operar com o sentido de uma tecnologia teórica, isto é, como um conjunto de saberes capazes de serem mobilizados na forma de técnica, ou de procedimentos, ou ainda, como instrumentos para a execução de uma atividade humana, adquirindo o status de um saber prático (COMTE, 1988).
De acordo com Barbaresco e Costa (2020), a ideologia positivista estabelece uma concepção de ensino, que valoriza mais o saber fazer do que a titulação. Além disto, o positivismo tem a Matemática, Astronomia, Física, Química, Fisiologia e Física Social como conhecimentos importantes, dentro de uma hierarquia, para o estudo de sua filosofia. A Escola de Engenharia de Porto Alegre se fundamentava na ideologia positivista de Augusto Comte. Compreende-se, diante disto, que Lüderitz formou-se em uma instituição que lhe proporcionou acesso a conhecimentosde natureza científica e que eram mobilizados para constituir um saber fazer, isto é, tinham um sentido prático.
No período de 1908 a 1921[1], ele foi diretor do Instituto Técnico-Profissional de Porto Alegre – denominado posteriormente de Instituto Parobé. Esta escola estava destinada para jovens de família pobres e oferecia a elas ensino gratuito. Seu ensino estava estruturado em elementar e técnico-profissional.
No ano de 1909, João Lüderitz realiza viagens para Europa e Estados Unidos com algumas finalidades, dentre elas se apropriar de modelos de ensino técnico-profissional. Foi em uma dessas viagens que ele teve contato com o modelo de ensino das escolas profissionais da Bélgica. Nessas escolas ele verificou que os estabelecimentos buscavam por “imitar” as condições reais da indústria e associavam os trabalhos experimentais com curso teórico. Na sua viagem pela Europa que Lüderitz teve contato com Omer Buyse, autor do livro Methodes Americaines d’Education, autor importante que tratou da constituição ciência do trabalho na Europa. Esse autor, bem como sua obra, tornou-se um dos referenciais mais citados por João Lüderitz em seus relatórios. Essas viagens lhe proporcionou o desenvolvimento de uma experiênciaa partir do seu contato com diferentes modelos (e métodos) de ensino técnico-profissional. Essa experiência serviu de base para ele propor a reforma de ensino do Instituto Parobé, o que melhorou sua qualidade levando-a a ser reconhecida nacionalmente (BARBARESCO; COSTA, 2020).
No contexto educacional, o período da Primeira República é marcado pelo predomínio da vaga pedagógica intuitiva, que tinha o método intuitivo como uma metodologia de ensino. Este método foi desenvolvido e sistematizado por Johann Heinrich Pestalozzi, nascido em Zurique, Suíça, em 1746. De acordo Valdemarin (2001), o ensino intuitivo pode ser descrito como um método de ensino concreto, racional e ativo, que preconiza a observação e o trabalho para direcionar o desenvolvimento do aluno. Há indícios de que o método intuitivo foi adotado por algumas escolas de ensino técnico-profissional como, por exemplo, a Escola de Aprendizes Artífices.
Quanto a João Lüderitz, percebe-se que ele foi influenciado por diferentes metodologias de ensino. Por exemplo, para a alfabetização dos alunos o método intuitivo prevalece. Para o desenvolvimento dos conhecimentos técnicos o método Sloyd (ou Slöjd) baseado no sistema russo Della-Voss. O Sloyd é um método de ensino para ser aplicado na formação técnica, que busca desenvolver capacidades para projeto e desenvolver objetos. Para tanto, age sobre o gerenciamento de ferramentas intelectuais, manuais e materiais para o desenvolvimento de conhecimentos práticos (ou técnicos) (BUYSE, 1927).
Ainda que o método intuito e sloyd sejam formas de ensino distintas elas possuem um denominador em comum, alterar o status do saber teórico para um saber prático. Nesse sentido, nota-se uma grande influência deste princípio nos trabalhos de João Lüderitz que se convertem em atitudes. Nas reformas para o ensino técnico-profissional ele propõe uma associação das disciplinas ditas teóricas com as práticas de oficinas, em particular, as disciplinas de exatas teriam um direcionamento para uma formação específica, incluindo as disciplinas voltadas para o ensino de matemática.
Sob o governo de Nilo Peçanha, foram criadas 19 escolas que foram instaladas nas capitais dos estados[2], denominadas de Escolas de Aprendizes Artífices (EAAs). Subordinadas ao Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio (MAIC), as escolas ofereciam ensino técnico-profissional, estruturado em: 1) Curso primário, com finalidade de ensinar os jovens a “ler, escrever e contar” (BRASIL, 1909); 2) Curso de Desenho, com o objetivo desenvolver conhecimentos para o exercício satisfatório do ofício e 3) A aprendizagem de um ofício. Todos os cursos ocorriam de forma concomitante no período de quatro anos. A partir dos trabalhos de Soares (1982), Fonseca (1986) e Cunha (2000) é possível constatar que essa rede de escolas teve problemas quanto à qualidade do seu ensino o que leva o governo, representado por Ildefonso Simões Lopes, ministro do MAIC, a sugerir a instauração de uma comissão que pudesse realizar uma remodelação do ensino ofertado pelas EAAs.
No relatório ministerial de 1920 (https://repositorio.ufsc.br/xmlui/handle/123456789/182543), verifica-se a citação do nome de João Lüderitz, para comandar a comissão que ficaria responsável por avaliar e propor uma remodelação para o ensino técnico-profissional das EAAs. A sua contratação pelo ministro do MAIC, isto é uma autoridade sobre ensino técnico-profissional do Brasil, está relacionada com o reconhecimento da sua capacidade e habilidade para exercer tal função. Com isso, temos indícios de que João Lüderitz pode ser considerado como um expert no que diz respeito ao ensino técnico-profissional e que suas tomadas de decisão tiveram implicações na sistematização de saberes matemáticos desta modalidade de ensino.
Compreende-se que os conhecimentos, experiência e atitudes de João Lüdertiz desenvolve uma expertise no que tange a modalidade de ensino técnico-profissional. Essa expertise vai ser solicitada pelo governo federal, por meio do MAIC, para se realizar a remodelação das EAAs, criadas a partir do Decreto nº 7.566, de 23 de Setembro de 1909. Essas escolas são consideradas como o marco que institui uma rede de ensino técnico-profissional no Brasil, com objetivo de difundir e oferecer formação profissional para jovens economicamente e socialmente desfavorecidos (SOARES, 1982; CUNHA, 2000).
Para compor a comissão de remodelação, João Lüderitz contratou uma equipe de professores do próprio Instituto Parobé, também conhecido como Instituto Técnico-Profissional de Porto Alegre. Esta comissão, posteriormente institucionalizou-se dentro do MAIC e passou a ser denominada de Serviço de Remodelação do Ensino Profissional Técnico, que por simplificação, neste texto será denominado de Serviço de Remodelação. Como resultado da remodelação, a comissão do Serviço de Remodelação, coordenada por João Lüderitz, constrói-se o documento de Consolidação dos Dispositivos Concernentes às Escolas de Aprendizes Artífices, presente no relatório do ministerial de 1926 (https://repositorio.ufsc.br/xmlui/handle/123456789/182544). Este documento adquire validade em 1926 e com ele busca-se unificar o ensino das EAAs. Também, traz novas orientações e prescrições para o ensino delas.
A legitimaçãodos conhecimentos, atitudes e experiências de João Lüderitz ocorre quando o ministro Ildefonso Simões Lopes, então ministro do MAIC, relata e reconhece problemas quanto ao ensino técnico-profissional das EAAs. Em seu relatório ministerial de 1920 ele afirma que:
Tão delicado problema exigia de tal modo a atenção de um especialista, que, de accôrdo com as vossas deliberações, contractei o Dr. João Luderitz, Director do Instituto Electro-tecnico de Porto Alegre, instituto que é próprio atestado da sua competência e operosidade (BRASIL, 1920, p. XLII, grifos dos autores).
Com isso, verifica-se que uma autoridade de ensino técnico-profissional, na figura do então ministro, reconhece as competências e habilidades de Lüderitz como um especialista para coordenar a remodelação do ensino das EAAs. De acordo com o relatório ministerial de 1920, sua função era de avaliar e propor modificações tanto estruturais, como construção de novas sedes para as escolas, quanto seu aparelhamento, quanto nos métodos de ensino, propondo práticas pedagógicas mais modernas e eficientes. Quanto aos métodos de ensino das EAAs, na visão Lüderitz essas escolas possuíam uma orientação primitiva que implicava uma aprendizagem rudimentar dos ofícios (LÜDERITZ, 1945).
A partir do que foi colocado anteriormente é possível constatar a existência de uma expertisepor parte de João Lüderitz sobre o ensino técnico-profissional. Com isso, pode-se, de forma adjetiva, atribuir a ele a qualidade de expert nesta modalidade de ensino. Essa sua expertise e ele, na qualidade de expert, vai trazer uma remodelação para os saberes matemáticos prescritos para a EAAs. Essa remodelação está associada a reestruturação, a sistematização de “novos” saberes e gerência dos mesmos.
Para se compreender melhor as implicações da expertise João Lüderitz na reorganização, sistematização e gerência dos saberes matemáticos para o ensino das EAAs, mobilizar-se-á as categorias matemática a ensinar e matemática para ensinar. Tais categorias são derivações de outras duas categorias saberes a ensinar, que deve ser entendida como “objetos do trabalho docente” (HOFSTETTER; SCHNEUWLY, 2017, p. 132), e saberes para ensinar, compreendidas como “ferramentas do trabalho docente” (HOFSTETTER; SCHNEUWLY, 2017, p. 134). Sendo assim, compreender-se a matemática a ensinar como sendo objetos matemáticos aos quais formar e que são definidos pela instituição de ensino. Já a matemática para ensinar é compreendida como ferramentas que são mobilizadas para efetivar o ensino dos objetos, ou ainda, da matemática a ensinar.
Quanto a matemática a ensinar, tem-se que Aritmética e Desenho eram os principais objetos da prática docente antes da implementação do documento de Consolidação dos Dispositivos Concernentes às EAAs. A aritmética apresentava-se como um objeto de instrução, isto é, de alfabetização, podendo, ou não, ter alguma aplicação com a aprendizagem do ofício. Já o Desenho tinha uma característica para desenvolver nos alunos os conhecimentos técnicos. Para tal, os saberes geométricos tinham um papel formativo, no sentido de desenvolver uma competência profissional. Os saberes aritméticos, que estão associados à finalidade “contar”, estavam estruturados na forma de matéria, entendidos como “um conjunto de conteúdos interligados ao processo de ensino que envolve a tríade ler-escrever-contar” (VALENTE, 2015, p. 358). Os saberes geométricos estavam integrados ao curso de desenho, isto é, não possuíam uma autonomia. Também, apresentavam-se prescritos na forma de matéria escolar. Ambos os saberes sofreram alterações a partir do trabalho realizado por João Lüderitz e sua equipe da comissão do Serviço de Remodelação.
Com o documento de Consolidação, presente no relatório ministerial de 1926, mas publicado em 1928, os saberes aritméticos e geométricos foram reorganizados e “novos” saberes sistematizados: álgebra e trigonometria. Com isso, a matemática a ensinar, no sentido de objeto do trabalho docente ganhou uma nova dimensão. Esse objeto agora era composto de um conjunto de disciplinas. Algumas delas voltadas para a instrução como o caso de Contas e Elementos de Geometria. Outras ganham caráter propedêutico, permitindo aos alunos acesso a conhecimentos mais avançados.
A caracterização da matemática a ensinar que constituiu o ensino de matemática das EAAs em um objeto não apenas instrutivo, mas também, propedêutico, pode ser verificado olhando para a estruturação do ensino técnico-profissional das EAAs a partir do documento de Consolidação. Na estruturação observa-se disciplinas como ‘Rudimentos de Physica’, ‘Physica experimental e noções de Chimica’ e ‘Noções de physica e chimica applicada’. Tais disciplinas, de alguma forma mobilizavam saberes para além da aritmética e geometria, álgebra e trigonometria se faziam importantes. Sendo assim, os saberes matemáticos prescritos ajudavam na aquisição destes conhecimentos mais avançados, que antes de 1926 não estavam prescritos para o ensino das EAAs.
Também, faz-se importante chamar à atenção que no documento de Consolidação dos Dispositivos Concernentes às EAAs percebeu-se a contribuição dos saberes matemáticos no desenvolvimento de competências e habilidades na aprendizagem de um ofício. Nesse sentido, se traz para discussão as disciplinas de Contas e Aritmética, presentes no documento de Consolidação e prescritas para o ensino elementar. Sobre essas disciplinas, de acordo com Barbaresco (2019), a disciplina de Contas era constituída de conteúdos voltados para permitir a instrução dos alunos, que em geral ingressavam na escola analfabetos. Para o autor, a disciplina de Aritmética teria uma finalidade para além da instrução, deveria munir os alunos de conhecimentos que pudessem ser mobilizados na aprendizagem do ofício.
A afirmação anterior converge com a existência de algumas disciplinas como, por exemplo, ‘Correspondencia e escripturação de officinas’. Esta disciplina, em particular, presente no primeiro ano do ensino complementar, período em que os alunos se especializariam em um dado ofício de sua escolha, estaria relacionada com uma tarefa do ofício, que são operações financeiras (receita de compra, venda de mercadorias e etc.). Os livros da coleção da Biblioteca de Instrução Profissional estavam indicados para uso no ensino das EAAs, como indicado na seção Os Livros Didacticos: a comissão julgadora apresentou seu parecer ao ministro a agricultura, do jornal O Imparcial de 15 de abril de 1925. Nesta coleção há um livro com títuloEscrituração comercial e industrial.
No livro Escrituração comercial e industrial observam-se ao longo do mesmo, muitas operações aritméticas, mas ele possui uma seção denominada de Tipos de Cálculo Mercantil, em que é composto de conteúdos como juros simples e desconto. Esses conteúdos estavam presentes na disciplina de Aritmética, no programa proposto por Lüderitz. Pode-se deduzir, ainda, que geometria, por exemplo, serviria para o desenvolvimento de competência relacionada a elaboração de projetos, consequentemente os seus conteúdos seriam mobilizados nas disciplinas de desenho como, por exemplo, na de ‘Desenho industrial e technologia’.
Diante do que foi posto, verifica-se que a caracterização da matemática a ensinarque emerge do documento de Consolidação, está para além do propedêutico, ela também serviu a um propósito da escola, que é desenvolver competências e habilidades na aprendizagem do ofício. Sendo assim, a expertisede João Lüderitz, a partir do trabalho de reorganização e sistematização dos saberes matemáticos, publicados no documento de Consolidação dos Dispositivos Concernentes às Escolas de Aprendizes Artífices, contribuiu para que a matemática a ensinar proposta para o ensino da EAAs se constituísse não apenas como um objeto de instrução, mas como um objeto próprio para esta instituição e servisse para seu propósito formativo.
De acordo com Hofstetter e Schneuwly (2017), as modalidades de organização e gestão dos saberes a ensinar estão relacionadas com as práticas de ensino. A instrução, planos de estudos, as finalidades, a estrutura administrativa e política agem sobre a instituição delineando o campo de atividade profissional. Tanto as práticas de ensino, quanto as ações que agem na instituição para definir o campo de atividade profissional estão relacionadas aos saberes para ensinar. Desta forma, se consegue perceber que a expertise de João Lüderitz também teve a finalidade de dar uma nova caracterização para a matemática para ensinar.
Antes do documento de Consolidação, o ensino técnico-profissional das EAAs estava estruturado em três cursos que ocorriam de forma concomitante ao longo de quatro anos, a saber: curso primário, curso de desenho e aprendizagem do ofício. Tais cursos tinham uma organização didático-pedagógica que seguia um modelo de escola graduada, isto é, dividido em classes (1º, 2º, 3º e 4º anos), estabelecendo uma progressão para o ensino. Nessa organização didático-pedagógica a matemática a ensinar estava distribuída de forma a atender este modelo, um tanto linear, em que se iniciava com os conceitos básicos e a cada ano os conteúdos iam progredindo (avançando). Este modelo de organização didático-pedagógico altera-se com o trabalho realizado por João Lüderitz e sua equipe do Serviço de Remodelação. Com o documento de Consolidação o ensino técnico-profissional das EAAs ficou dividido em dois níveis: elementar e complementar. Cada nível seguia uma organização didático-pedagógica ainda assentada na forma graduada. O ensino elementar compreendia do 1º ao 4º ano, enquanto o complementar do 5º ao 6º, denominado no documento, respectivamente, de 1º e 2º ano complementar. Os cursos sofreram alterações em sua organização mediante esse “novo” modelo ensino, em que os conteúdos não seriam estruturados na forma de matéria escolar. A partir de 1926, a prescrição no documento de Consolidação foi de que tais cursos (primário e de desenho) seriam constituídos de disciplinas.
De acordo com o programa proposto no documento de Consolidação, havia um rol de disciplinas para ensino de aritmética, Contas e Arithmetica, e de geometria, Elementos de Geometria, Geometria e Geometria Applicada, além das disciplinas de Álgebra e Trigonometria. Como já apontado, segundo Barbaresco (2019), a disciplina de Contas estava voltada para alfabetização, isto é, constituída de conteúdos teóricos e abstratos. Já a disciplina de Arithmetica contribuía para a formação técnica, munindo o aluno de conteúdos que poderiam ser mobilizados na prática do ofício como, por exemplo, sistema de numeração, regra de três simples e compostas, juros etc. Em outras palavras, o ensino de aritmética, organizado em disciplinas, evidencia dois objetos de ensino: um teórico, para alfabetização, outro aplicado/prático.
O mesmo pode ser deduzido para os conteúdos geométricos. A disciplina Elementos de Geometria parece indicar uma disciplina que se constitui de conteúdos básicos (teóricos) de geometria. Já a disciplina Geometria Applicada constitui-se de conteúdos que possam ser mobilizados para a prática do ofício. Com isso, verifica-se que com a “nova” organização dos conteúdos matemáticos propostos no documento de Consolidação há uma matemática a ensinar “teórica”, composta por saberes elementares, abstratos, e uma matemática a ensinar “prática”, composta por saberes que possam ser mobilizados na prática da aprendizagem do ofício.
Quanto a matemática para ensinar altera-se com a implementação do documento de Consolidação. De 1909 a 1926, a matemática para ensinar estava voltada para ações sobre a matemática a ensinar que viabilizassem a instrução do aluno. Mas, após 1926, com a criação das disciplinas, a matemática a ensinar trata-se de um objeto não apenas voltado para instrução, mas passa a ter um papel de proporcionar uma melhor formação técnico-profissional dos alunos. Com isso, verifica-se que as disciplinas, cada qual com suas finalidades, geram diferentes práticas de ensino. Por exemplo, a disciplina de Contas continua com a finalidade de instruir o aluno, entretanto a disciplina de Aritmética não tem mais este papel, busca-se com ela instrumentalizar técnicas aos alunos que possam ser mobilizadas nas práticas dos ofícios. Isso acontece também com os saberes geométricos quando se propõe o ensino de elementos de geometria, geometria e geometria aplicada.
Essa forma de distribuição dos saberes matemáticos no documento de Consolidação evidencia que cada uma das propostas segue uma finalidade, uma escolha específica de saberes, maneiras diferentes de aprender um determinado assunto (aritmética e geometria, por exemplo) e etc. Práticas “novas” de ensino estavam sendo implementadas estabelecendo outro modelo de transmissão de saberes. Diante disto, o que se pode compreender é que a instituição das disciplinas as torna ferramentas do trabalho docente, implicando em uma matemática para ensinardiferente daquela proposta antes do documento de Consolidação.
Diante do que foi exposto, é possível afirmar que João Lüdertiz é um expert em ensino técnico-profissional, tendo desenvolvido ao longo da sua formação e vida profissional uma expertisesobre o funcionamento e o ensino de matemática. Essa sua expertise vai lhe render um reconhecimento pelo seu trabalho quanto a reforma do ensino do Instituto Parobé. Com isso, ele foi chamado por uma autoridade do ensino técnico-profissional, o MAIC, para propor uma remodelação do ensino das EAAs. É com este trabalho que ele vai conseguir amplificar suas ideias e consolidar saberes a ensinare saberes para ensinar próprio para esta rede de escolas de ensino técnico-profissional. Como resultado, a partir da sua proposta de remodelação é possível constatar e ter indícios de houve também a constituição de uma “nova” matemática a ensinar e matemática para ensinar.
Referências
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Fontes Consultadas
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Notas
[1] Informações extraídas do site da Escola Técnica Estadual Parobé. Disponível em: http://www.cteparobe.com.br/pagina/78_Historia-da-Cidade.html Acesso em: 17 fev. 2020.
[2] Com exceção do Rio de Janeiro, em que a Escola de Aprendizes Artífices foi instalada na cidade Campos, e do Rio Grande do Sul, que já possuía o Instituto Parobé (antigo Instituto Técnico Profissional de Porto Alegre). Entretanto, o Instituto Parobé, em 1918, com o Decreto nº 13.064, torna-se parte rede de escolas de ensino técnico-profissional mantido pelo governo federal e, então, se equipara as Escolas de Aprendizes Artífices.
Cleber Schaefer Barbaresco
David Antonio da Costa